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1 dia agoon
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Um bebê dos EUA, portador de uma deficiência congênita no fígado, é a primeira pessoa a receber um tratamento genético feito exclusivamente para ele. O paciente, de 10 meses de idade, participou de uma pesquisa científica que teve como resultado uma medicação feita “sob medida” para sua condição. O avanço notável, porém, ainda está longe de ser considerado uma cura, como apontam os pesquisadores e um especialista ouvido pela Gazeta do Povo.
O pequeno K. J. Muldoon herdou duas mutações genéticas – uma de cada um dos pais – no gene responsável pela produção da enzima carbamoil fosfato sintetase 1 (CPS1), levando a uma deficiência dessa enzima no fígado. Essa enzima é essencial para o início do ciclo da ureia, processo que elimina o excesso de nitrogênio resultante do metabolismo de proteínas, como as do leite materno. Sem essa enzima, o bebê desenvolveu hiperamonemia — uma condição potencialmente fatal causada pelo acúmulo de amônia no sangue.
A amônia é altamente tóxica para o cérebro dos seres humanos, e pode impedir que o bebê cresça o suficiente para estar habilitado para um transplante de fígado, o tratamento padrão para casos como esse. A alternativa encontrada pela equipe médica do Children’s Hospital of Philadelphia para minimizar os riscos de danos cerebrais ou mesmo a morte da criança foi a terapia genética.
Liderado pela equipe da pediatra Rebecca Ahrens-Nicklas, o time de especialistas optou por uma técnica baseada na edição genética, que permite alterações altamente precisas em pontos específicos do DNA do paciente, utilizando ferramentas derivadas do sistema CRISPR. O medicamento resultante desta técnica foi desenvolvido em seis meses de estudos, cujos resultados foram publicados no New England Journal of Medicine, e serve única e exclusivamente para o filho da família Muldoon.
O tratamento foi administrado por via intravenosa, utilizando um vetor viral projetado para levar a ferramenta de edição genética até as células do fígado.
“Meu maior medo em todo o processo foi dar falsas esperanças à família. Mas nós sabíamos que naquele momento nós tínhamos uma equipe clínica e um time de desenvolvimento do tratamento capaz de fazer um ‘remédio’ que fosse exclusivo para o bebê. Esse tratamento é personalizado, e foi projetado especificamente para corrigir as variações genéticas presentes do fígado do pequeno K. J.”, avaliou a doutora Nicklas.
Os resultados se mostraram promissores logo após a primeira aplicação. Os pais do bebê, Nicole e Kyle, notaram que a cor das bochechas de K. J. tinha voltado ao normal, e ele passou a tolerar mais proteína em sua dieta, o que levou os médicos a reduzirem as doses de outras medicações que ele estava tomando.
“Nós estávamos em uma situação em que era preciso enfrentar a condição dele, não havia saída. Agora finalmente estamos vendo uma luz no fim do túnel”, disse a mãe do bebê. “Antes ele era um ‘feijãozinho’ de um quilo e meio, e agora está esse bebê forte, fofinho, com cara de saudável. Fico muito feliz por ter dado a ele essa condição de nos mostrar o que ele poderia ser depois do tratamento”, completou.
As pesquisas envolvendo edição genética vinham sendo desenvolvidas na Universidade da Pensilvânia antes do nascimento de Muldoon. O cardiologista, geneticista e editor de genes Kiran Musunuru, que trabalha na universidade e participou do projeto do tratamento sob medida para o bebê, explicou que o editor dos genes é programado para colocar o código de DNA corrigido dentro do núcleo das células.
“Estamos praticando o desenvolvimento de terapias personalizadas semelhantes há cerca de dois anos, com a ideia de que algum dia poderemos estar em uma posição em que poderemos rapidamente tentar descobrir como usar a edição genética para corrigir o gene danificado de um paciente que é responsável por sua doença. Mas ainda não é uma cura”, comentou.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o doutor em Genética e Biologia Molecular e professor da PUC Roberto Herai comemorou os bons resultados do tratamento inédito. “O DNA é como o manual de instruções do nosso corpo, e cada parte do corpo ‘lê’ uma ‘página’ diferente desse manual. Nesse caso, é como se os médicos tivessem corrigido um ‘erro de impressão’ nessa parte do manual que correspondia ao fígado daquele paciente”, comparou.
O especialista destaca que a técnica é promissora, mas ainda tem um custo elevado e levará décadas até que esteja amplamente disponível para o público. Este cenário, apontou Herai, é comum no campo da medicina e dos tratamentos com medicamentos.
“Um exemplo bem documentado é o da Aspirina, que quando foi desenvolvida era caríssima. Hoje custa centavos e está à disposição de qualquer um em qualquer farmácia. São conceitos diferentes, mas imagino que essa possibilidade de terapias personalizadas possa estar, no futuro, disponível para uma série de doenças de origem genética”, disse.
Porém, para o especialista, não é possível falar em cura por meio deste tipo de tratamento. Apesar de o tratamento ter corrigido as mutações em parte das células do fígado, o órgão está em constante renovação. Assim, existe o risco de que células não corrigidas se proliferem, tornando necessária a repetição do tratamento no futuro. E como o código genético original do bebê conta com a mutação, é preciso um monitoramento constante, com exames periódicos, para avaliar a necessidade de novas aplicações.
“Vamos dizer que há um quadro em que metade dessas células foram corrigidas e a outra metade não. Não há como garantir que um desses grupos prevaleça sobre o outro. Essas células vão se dividir, outras vão morrer, e isso depende do organismo. Se as células mutadas prevalecerem, aplica-se novamente o tratamento, e assim vai ao longo da vida do paciente. Ainda assim é surpreendente o resultado obtido”, concluiu.