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Sem folgas, férias ou privacidade: como é a rotina de quem transmite a vida na internet (o tempo todo)
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Streamers ganham dinheiro com ‘lives infinitas’, gravando refeições, noites de sono e até momentos de luto — às vezes, por anos. Psicólogo alerta para impactos na vida social e risco de burnout. Como é a rotina de quem transmite a própria vida na internet (o tempo todo)
Do que você estaria disposto a abrir mão pelo trabalho dos sonhos? Privacidade? Descanso? Um relacionamento? Para a streamer americana conhecida como Emilycc, essas renúncias se tornaram parte do pacote.
Há mais de três anos, a jovem de Austin, no Texas, ganha dinheiro transmitindo sua rotina na internet 24 horas por dia, sete dias por semana, sem desligar a câmera nem por um minuto.
Sim, seus quase 400 mil seguidores na plataforma Twitch, voltada para transmissões ao vivo, a acompanham sem pausas, enquanto ela dorme, faz refeições, vai ao mercado, limpa a casa e até lida com o luto pela morte da cachorrinha.
“Quando tenho privacidade, é porque fui ao banheiro”, contou ao g1.
Emilycc transmite a própria vida ao vivo 24 horas por dia
Reprodução
André Felipe Pinheiro, conhecido na internet como MeiaUm, trabalha de uma forma parecida. De Fortaleza, no Ceará, ele chegou a manter uma live ininterrupta na Twitch por mais de um ano, mas com o apoio de uma equipe para cobrir sua ausência em vários momentos.
💰 Na plataforma, os criadores de conteúdo ganham dinheiro com cada nova inscrição no canal, que custa US$ 5,99, além de faturar com anúncios, doações e outras ferramentas on-line. Ao todo, eles receberam mais de US$ 1 bilhão em 2024, segundo a Twitch.
“Eu diria que o meu faturamento [incluindo outras plataformas, como o YouTube, e parcerias publicitárias] é na faixa de uns R$ 25 mil. Tem meses que é mais, tem meses que é menos, e desse dinheiro tem a parte que vai para a moderação, para o pessoal que está lá o tempo inteiro”, explica MeiaUm.
André Felipe, conhecido como MeiaUm, fez live que durou mais de um ano
Arquivo pessoal
Nos chamados “subathons” (junção das palavras “subscription” e “marathon”, ou seja, maratona de assinaturas), os streamers se desafiam a ficar mais tempo ao vivo a cada nova inscrição — mas transmissões longas nem sempre significam mais dinheiro, alerta Anadege Freitas, diretora de parcerias e conteúdo da Twitch Brasil.
“A gente conversa que eles precisam ser inteligentes em termos de esforço e retorno, olhar as métricas para otimizar o tempo”, orienta.
Para Marcos Torati, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, o trabalho nas redes sociais precisa ser tratado com cautela: essa exposição constante, segundo ele, pode levar a burnout, esvaziamento existencial e dependência emocional da validação online.
Nesta reportagem, você pode explorar a profissão dos streamers “infinitos” a partir dos três tópicos abaixo.
O sonho de viver de games
Nem tudo é jogo: a pressão de entreter sempre
Nunca offline — e mesmo assim, sozinho
O sonho de viver de games
Loja de conveniência, supermercado, restaurante, parque aquático… Antes de mergulhar no mundo das transmissões ao vivo, Emilycc passou por vários empregos, mas sempre soube que queria trabalhar com entretenimento.
“Pegava vários empregos ruins só para ganhar algum dinheiro, mas, quando descobri a Twitch, amei instantaneamente. Tive cinco espectadores na minha primeira transmissão, mas já gostei porque encontrei pessoas para jogar videogame. Sempre fui tímida e introvertida”, conta.
Quando percebeu que poderia ganhar dinheiro com o hobby, Emily largou o trabalho e passou a se dedicar ao streaming. “Decidi ir com tudo e tenho feito isso há nove anos”, diz.
Streamer Emilycc mora em Austin, no Texas
Arquivo pessoal
A ideia de transmitir por dias seguidos não foi planejada. O “subathon” começou como uma tentativa de reacender o engajamento, mas os minutos extras somados a cada novo seguidor fizeram a live crescer sem parar.
“Pensei: ‘Não quero que isso acabe’, porque estava indo bem. Fui a primeira pessoa a atingir 100 dias em um subathon. Aí resolvi continuar, transformar isso num estilo de vida.”
O brasileiro André Felipe, o MeiaUm, também começou por hobby, ainda na escola. Inspirado por outros streamers, passou a criar vídeos de games e a editar por conta própria.
“Eu já fazia uns freelas enquanto estudava. Venho de uma família mais pobre, então comecei a ajudar nas contas de casa, e isso virou meu trabalho”, lembra.
Assim como Emily, ele não planejava ficar tanto tempo ao vivo. A ideia inicial era transmitir por uma semana. Mas, com cada novo inscrito, o tempo aumentava.
“A rotina virou basicamente em função da live. O time estava preparado para pouco tempo, mas ficou bem mais.”
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Nem tudo é jogo: a pressão de entreter sempre
Embora trabalhar com games seja uma diversão para Emily e André, manter uma transmissão ativa 24 horas por dia e engajar o público pode ser exaustivo.
“Às vezes eu só quero deitar na cama, relaxar e descansar. E eu sinto que, quando faço isso, estou meio que decepcionando as pessoas porque não estou criando conteúdo. Eles me veem deitada na cama, só rolando o TikTok ou assistindo a um filme”, desabafa Emily.
Na Twitch, o principal tipo de conteúdo são as lives de games, mas vídeos de bate-papo (categoria “Só na Conversa”), de rotina (“Real Life”) e de conversas esportivas têm feito cada vez mais sucesso.
Anadege Freitas, diretora na plataforma, explica que a autenticidade é o que gera engajamento. “Quem faz lives mais longas não consegue se editar. As pessoas reconhecem que, na Twitch, elas podem ser elas mesmas”, diz.
Por isso, Emily faz questão de envolver o público: leva os seguidores em passeios, viagens e tenta manter a conversa ativa no chat.
No entanto, admite que o dia a dia nem sempre tem grandes acontecimentos e que, apesar da conexão sensível com quem a acompanha, o que os espectadores mais procuram ainda é entretenimento leve.
“Eu acabei de perder minha cachorra recentemente e foi muito difícil transmitir porque estou ativamente de luto. E as pessoas não querem assistir a isso. Elas querem ir para casa e assistir a algo que lhes traga alegria”, afirma.
Emilycc perdeu a cachorrinha Snowy em fevereiro deste ano
Arquivo pessoal
No caso de MeiaUm, quando ele não estava disposto ou tinha algum compromisso, outros moderadores se encarregavam da live. Mas, ainda assim, era importante que o público soubesse onde ele estava e quando iria voltar.
“Às vezes é meio complicado. Falta privacidade. Se eu viajo, não tenho internet em todo canto, então eu fico avisando: ‘Estou em tal lugar, ligo assim que der’, para manter o pessoal unido.”
“Na live 24 horas, existe uma preocupação mesmo quando eu estou dormindo. Eu penso: ‘Será que caiu a internet? Será que caiu a luz?’ Tenho toda uma estrutura para não acontecer isso”, relata.
Sem horário fixo, férias ou pausas ao longo do dia, trabalhar com transmissões “infinitas” pode levar ao burnout, alerta o psicólogo Marcos Torati.
Segundo ele, mesmo atuando como autônomos, esses profissionais podem acabar se tornando “escravos do ponto de vista emocional, em uma busca incessante por likes, seguidores, audiência e patrocínio”.
Como não há subordinação direta nem controle sobre a jornada, não existe vínculo empregatício entre os streamers e a Twitch — ou seja, não há limites de horário, folgas remuneradas nem outros direitos garantidos nas leis trabalhistas, explica o advogado Luciano Andrade Pinheiro, sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.
Ainda assim, segundo ele, é possível que a empresa venha a ser responsabilizada de alguma forma se não agir diante de sinais de exaustão dos usuários.
A Twitch afirma que orienta os criadores com ações educativas sobre saúde mental e boas práticas de uso da plataforma. Também promove eventos e canais de diálogo para que eles troquem experiências e aprendam a otimizar o tempo online.
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Nunca offline — e mesmo assim, sozinho
Quando começou a transmissão que durou mais de um ano, MeiaUm costumava dormir em frente às câmeras, assim como faz Emily até hoje. Mas, depois de dois meses, conversou com os seguidores e explicou que precisava, pelo menos, desse momento sozinho.
“Mas, no geral, eu vejo como um negócio superlegal. É uma oportunidade única estar com o pessoal que me acompanha. Não é todo mundo que está vivendo essa experiência, sabe?”, afirma MeiaUm.
MeiaUm faz lives de games, música e bate-papo
Arquivo pessoal
Para Emily, estar acompanhada o tempo todo no mundo virtual acabou prejudicando sua vida social offline — embora ela já fosse, antes, uma pessoa tímida e caseira.
“Se eu saio com amigos, a live vem comigo, o que obviamente tem sido muito difícil. Então, eu tenho, tipo, dois amigos. […] E estou solteira há cinco anos”, conta.
De acordo com o psicólogo Marcos Torati, essa dinâmica pode ser problemática à medida que a pessoa passa a investir mais no “eu digital” do que no “eu psicológico, biológico e social”.
“O ‘eu real’ não importa. Vou ter prejuízo na minha vida social, amorosa, mas, em contrapartida, vem mais audiência. É como se fosse um preço válido a se pagar — mas não é, porque, no fundo, o ‘eu’ existe no corpo”, afirma.
Ele diz que o streamer pode sofrer um esvaziamento existencial, com medo de deixar ou até mesmo reduzir a vida online.
“A pessoa pode pensar: ‘Investi tanto nisso que, quando eu sair dessa estrutura, não tenho vida pra viver’. Ela pode cair em um buraco existencial, em depressão, em uma epidemia de solidão ligada à hiperconectividade, sem propósito e sentido de vida”, diz o especialista.
Emily reconhece que já pensou várias vezes em encerrar a transmissão — especialmente em momentos difíceis —, mas ainda não vê isso como uma saída.
“Quando minha cachorra faleceu, eu pensei muito se queria acabar com a live porque é uma coisa simplesmente desconfortável de transmitir. Mas eu sinto que, se eu acabasse com a transmissão naquele momento, teria piorado as coisas”, diz.
“Eu sinto conforto quando estou ao vivo. Geralmente me sinto melhor”, completa.
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