Entretenimento
os segredos do segundo cérebro
Published
4 horas agoon
By

Durante muito tempo, o intestino foi tratado apenas como um operário discreto do nosso corpo — encarregado das funções “menos nobres” e quase sempre excluído das conversas sobre saúde, bem-estar e, principalmente, sobre quem somos.
Mas a ciência vem mudando essa percepção. E poucos livros traduzem isso com tanta clareza quanto “O Discreto Charme do Intestino” (editora Sextante), best-seller internacional da médica e pesquisadora alemã Giulia Enders.
Especialista em gastroenterologia, Enders conduz com humor e leveza uma verdadeira viagem pelos segredos do sistema digestivo. E revela como o órgão está intimamente ligado a aspectos emocionais e até à forma como pensamos, como você lê no recorte a seguir.
Nós, seres humanos, temos orgulho de nosso cérebro tão complexo. Refletir sobre leis fundamentais, filosofia, física ou religião indica um alto desempenho e pode desencadear movimentos muito elaborados. É impressionante que nosso cérebro consiga fazer coisas do gênero.
Porém, com o tempo, nossa admiração ultrapassou os limites. De repente, atribuímos à nossa cabeça toda a nossa vivência — imaginamos que a sensação de bem-estar, a alegria ou a satisfação se deem no cérebro.
No caso de insegurança, medo ou depressão, nos sentimos envergonhados, como se tivéssemos um computador quebrado dentro da cachola. E quem nos ensina essa lição é justamente o intestino. Um órgão conhecido por produzir montinhos marrons e sons de pum em diferentes variações de trombeta.
Segundo pesquisas recentes, é justamente esse órgão que causa uma mudança de pensamento, pois começa a questionar a posição de liderança do cérebro. O intestino tem não apenas um incontável número de nervos, mas também, em comparação com o restante do corpo, uma enorme diversidade deles.
Possui toda uma frota de diferentes sinais químicos, materiais isolantes dos nervos e interconexões. Apenas um outro órgão possui tamanha versatilidade: o cérebro.
Justamente por ser tão grande e de complexidade química semelhante, a rede nervosa do intestino também é chamada de “cérebro intestinal”. Se o intestino fosse responsável apenas por transportar o alimento e nos fazer peidar de tempos em tempos, um sistema nervoso tão elaborado como esse seria um estranho desperdício de energia — nenhum corpo construiria essa rede de neurônios para uma simples tubulação de puns.
Deve haver algo mais por trás disso. Na verdade, nós, seres humanos, já sabemos desde tempos imemoriais o que a ciência só descobriu aos poucos: nossa intuição tem grande participação em como nos sentimos.
“Nós nos borramos nas calças” quando estamos com medo, “engolimos sapo”, temos que “digerir” as derrotas e uma decepção “deixa um gosto ruim na boca”. Diante de uma dificuldade, “fazemos das tripas coração”. Nosso “eu” se compõe de cabeça e abdome.
Estudo com cócegas
Quando investigam os sentimentos, os cientistas começam buscando alguma coisa que possam medir. Desenvolvem uma escala de ideação suicida, medem o nível hormonal para avaliar o amor, testam comprimidos contra a ansiedade. Para quem está de fora, isso não parece muito romântico.
Em Frankfurt, houve até um estudo em que cientistas realizavam um dispendioso escaneamento do cérebro enquanto uma equipe auxiliar de estudantes fazia cócegas nos genitais do participante com uma escova de dentes.
Através de experimentos como esses, descobre-se a que áreas cerebrais chegam sinais de determinadas regiões do corpo, o que ajuda a produzir um mapa do cérebro. Assim ficamos sabendo que os sinais dos genitais chegam às partes superior e central do cérebro, pouco abaixo da risca dos cabelos
O medo surge no interior do cérebro, por assim dizer, entre as duas orelhas; pouco acima das têmporas fica a área responsável pela formação das palavras; pensamentos morais surgem atrás da testa, e assim por diante.
Para entender melhor a relação entre o intestino e o cérebro, é preciso percorrer suas vias de comunicação e saber como os sinais vão do abdome até cabeça e o que nela podem provocar. Sinais que partem do intestino podem chegar a diversas áreas cerebrais, mas não a todas.
Nunca chegarão, por exemplo, ao córtex visual, na parte posterior da cabeça. Se fosse assim, veríamos imagens ou efeitos do que acontece no intestino.
Contudo, conseguem chegar à ínsula, ao sistema límbico, ao córtex pré-frontal, à amígdala, ao hipocampo e ao córtex cingulado anterior. Os neurocientistas vão gritar, ofendidos, se virem as competências dessas regiões resumidas por mim de modo tão grosseiro: autoconsciência, processamento das emoções, moral, sensação de medo, memória e motivação.
Isso não significa que nosso intestino conduza nossos pensamentos morais — mas tem a possibilidade de influenciá-los. No laboratório, é preciso tentar abordá-lo pedaço por pedaço, a fim de verificar essas possibilidades com mais precisão.
Camundongos na água
O teste do nado forçado em camundongos é um dos experimentos mais elucidativos em pesquisas sobre motivação e depressão. Nele, o camundongo é colocado em um recipiente comprido cheio de água.
Ele não alcança o fundo, por isso movimenta as patas sem parar, na tentativa de sair dali. A questão é: por quanto tempo o camundongo vai nadar por seu objetivo?
No fundo, essa é uma situação primordial da vida. Quanto buscamos uma coisa que julgamos possível? Pode ser algo concreto, como sair do recipiente de água ou se formar no colégio, ou algo abstrato, como ser feliz.
Camundongos com traços de depressão não nadam por muito tempo. Simplesmente paralisam e aguardam o fim apaticamente.
Em seu cérebro, os sinais inibidores parecem ser transmitidos com muito mais eficácia do que os impulsos motivadores e propulsores. Além disso, eles reagem com mais intensidade ao estresse.
Normalmente, pode-se testar novos medicamentos antidepressivos nesses animais — se eles nadarem por mais tempo após ingerir a substância, é um bom indício de que ela pode funcionar.
Os pesquisadores da equipe do cientista irlandês John Cryan deram um passo além nesse experimento. Eles alimentaram metade de seus camundongos com uma bactéria conhecida por fazer bem ao intestino: Lactobacillus rhamnosus JB-1. Essa ideia de alterar o comportamento dos camundongos através do abdome ainda era muito inovadora em 2011.
Não apenas os camundongos com intestino incrementado dessa forma nadaram por mais tempo, como também foram encontrados em seu sangue menos hormônios do estresse. Além disso, em relação a seus colegas da mesma espécie, eles se saíram nitidamente melhor nos testes de memória e aprendizado.
Porém, quando os cientistas cortaram o chamado nervo vago, já não se notou diferença entre os grupos. Esse nervo é a via mais importante e mais rápida ligando intestino e cérebro. Ele percorre o diafragma, subindo até o esôfago por entre os pulmões e o coração e passando pela garganta até chegar ao cérebro.
Em uma experiência em humanos, constatou-se que os participantes podiam ser levados a se sentir bem ou a ter medo se esse nervo fosse estimulado com determinadas frequências. Desde 2010 é até permitida na Europa uma terapia para casos de depressão que se baseia em estimular o nervo vago.
Portanto, esse nervo funciona um pouco como uma linha telefônica, através da qual um colaborador externo transmite suas impressões à central, ou seja, à cabeça.
O cérebro precisa dessas informações para poder saber como está a situação do corpo, pois se encontra isolado e protegido como nenhum outro órgão: reside em um crânio ósseo, envolvido por espessas meninges, e cada gota de sangue é filtrada antes de ser transportada às áreas cerebrais.
Já o intestino se encontra no meio da muvuca. Ele conhece todas as moléculas da nossa última refeição, aborda com curiosidade os hormônios em circulação no sangue, pergunta às células imunocompetentes como foi seu dia ou então ouve concentrado o zumbido das bactérias intestinais. É capaz de contar ao cérebro coisas sobre nós das quais ele jamais suspeitaria.
O maior órgão sensorial
O intestino reúne todas essas informações não apenas com a ajuda de boa parte do sistema nervoso, mas também graças à sua gigantesca superfície. Isso o torna o maior órgão sensorial do corpo.
Perto dele, olhos, orelhas, nariz ou pele não são nada. As informações desses órgãos chegam à consciência e são utilizadas para que eles possam reagir ao ambiente. Assim, quando se trata da nossa vida, agem como sensores de estacionamento.
Já o intestino é uma gigantesca matriz; ele sente nossa vida interna e trabalha na subconsciência. Intestino e cérebro trabalham em parceria desde cedo. Juntos, eles são responsáveis por grande parte do nosso mundo emocional quando somos bebês.
Adoramos o conforto da saciedade, ficamos desesperados com a fome e, resmungando, nos atormentamos com os gases. Familiares nos alimentam, trocam nossas fraldas e nos põem para arrotar. Ou seja, quando bebês, nosso “eu” consiste nitidamente de intestino e cérebro.
À medida que crescemos, passamos a perceber o mundo com todos os sentidos. Já não choramos a plenos pulmões quando a comida do restaurante é ruim. Contudo, a ligação entre intestino e cérebro não se desfaz de repente; apenas se refina.