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Em meados deste mês de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 928.943 (tema 914), relativo à Cide instituída pela Lei nº 10.168/2001 (Cide Remessas). Na ocasião, o Pleno decidiu pela constitucionalidade da contribuição, inclusive com as alterações realizadas pelas Leis nºs 10.332/2001 e 11.452/2007. No que se refere à destinação da arrecadação do tributo, a tese firmada pelo tribunal enuncia: “deve ser integralmente aplicada na área de atuação Ciência e Tecnologia, nos termos da lei”.
Foi o ministro Flávio Dino, indicado redator para o acórdão, que conferiu olhar mais específico para a destinação da Cide Remessas. Por ocasião do julgamento, afirmou que, a despeito de haver um consenso quanto à manutenção da destinação do tributo, a arrecadação não deveria ser desprezada, sob pena de transformar a Cide em “mero instrumento de escape e, portanto, segmentar o aparato da sua real finalidade”. Aliás, destaca o ministro, a criação da Cide Remessas foi acompanhada de redução equivalente do imposto de renda retido na fonte por ocasião de pagamentos para o exterior justamente para possibilitar a vinculação da arrecadação a um determinado fundo, afeto à finalidade da Cide. Por isso, conclui, “essa questão da destinação é indissociável da preservação da fonte, conforme vigente há 24 anos”.
A postura do ministro é acertada e tem relação direta com o caráter normativo que a destinação assume no caso das contribuições. Como já destacamos em outra ocasião (Curso de Direito Tributário, 2023, Ed. RT), a destinação apresenta-se como um critério intrínseco à classificação dos tributos, e não extrínseco. Trata-se de elemento constitutivo das contribuições. Sobre isso, inclusive, não se trata de afirmar que seria critério integrante da regra-matriz de incidência tributária das contribuições. De nossa perspectiva, a destinação consta de outra norma, igualmente tributária, que complementa o fundamento de validade respectivo. Não fosse isso, não haveria qualquer distinção entre impostos e contribuições.
À luz dessa premissa, para bem compreender a decisão do STF, devemos ter em conta a existência de ao menos três significados para “destinação”, quando se trata de avaliar a figura das contribuições.
A primeira é a destinação normativa, que se qualifica como o detalhamento da finalidade do tributo e, assim, a indicação da despesa pública que será custeada com a receita tributária respectiva – no caso das contribuições, tal especificação pode se dar tanto pelo texto constitucional quanto pela norma instituidora da exação. O segundo e o terceiro significados para “destinação” têm relação com a medida do cumprimento da destinação normativa: trata-se da destinação financeira e da destinação fática. Cuidando-se de destinação financeira, deve-se indagar sobre a existência de normas de repasse que viabilizem a aplicação dos valores arrecadados nas finalidades previstas na norma anterior; sendo a hipótese de destinação fática, cumpre verificar se a autoridade administrativa efetivamente aplicou os recursos nos fins previstos (Piscitelli, Curso, cit., cap. 05, item 4.2.2).
A destinação financeira possui dois níveis distintos tanto em conteúdo quanto em grau de abstração. A primeira condição para que haja destinação financeira é a previsão, na lei orçamentária anual, da distribuição dos recursos arrecadados, com a respectiva indicação dos órgãos beneficiados e despesas em face das quais as receitas farão frente.
Contudo, apenas isso não basta para concluirmos pela efetiva aplicação do dinheiro público na finalidade pretendida pela norma tributária. Faz-se necessário avançar para o segundo nível de destinação financeira: aquele realizado pelo Poder Executivo, via decreto, por ocasião da publicação da programação financeira e cronograma da execução mensal de desembolso de receitas públicas. Esse é o primeiro passo para a execução orçamentária. Chegamos, então, ao terceiro significado de destinação: a destinação fática, que consiste na realização efetiva da despesa pública na finalidade anteriormente firmada – isso implica o percurso de todas as etapas da execução orçamentária: empenho, liquidação e pagamento.
Diante disso, cumpre indagar em que medida essas destinações são relevantes para infirmar a validade de um dado tributo. Segundo o ministro Flávio Dino no julgamento da Cide Remessas, a correta destinação desse tributo é indissociável de sua validade, sob pena de “segmentar o aparato de sua real finalidade”. Tanto assim que a tese firmada pelo STF foi no sentido do dever integral de se aplicar as receitas arrecadadas com a Cide na área de atuação Ciência e Tecnologia.
Considerando as premissas acima desenvolvidas, não parece que o Supremo esteja preocupado com a destinação normativa. Em verdade, a ausência de destinação normativa no caso das contribuições seria por si só suficiente para considerar o tributo inconstitucional, já que ausente o elemento central que discrimina as contribuições de impostos -cogitemos, aqui, de uma Cide sem destinação específica, voltada a despesas gerais. O debate não é este.
O Tribunal pretende assegurar que a Cide Remessas (e outras contribuições afins) não se transforme em mero instrumento arrecadatório desvinculado de sua função central, enunciada na lei (destinação normativa). No caso em análise, trata-se do incremento tecnológico. Para isso, faz-se necessário avançar na análise das destinações financeira e fática. Nesse sentido, o ministro Dino afirma ser necessário “amarrar a legislação de modo rígido” no que se refere ao uso das receitas na finalidade prevista.
A meu ver, isso requer tanto a análise das leis orçamentárias que determinam a distribuição das receitas da Cide Remessas (e a necessária vinculação ao FNDCT) quanto abre margem para ponderarmos sobre a destinação fática e, assim, o efetivo gasto em desenvolvimento tecnológico. Essa mesma lógica pode ser aplicada a outras contribuições, de contribuição de intervenção no domínio econômico ou não.
Apenas para trazer um exemplo possível de investigação acerca da arrecadação tributária da Cide Remessas, consideremos o ano de 2021: segundo o Portal da Transparência, o orçamento atualizado do FNDCT era de R$ 7,34 bilhões. Contudo, apenas houve o empenho de R$ 1,89 bilhão em despesa e pagamento de R$ 1,3 bilhão. Dentre os valores arrecadados, as receitas com contribuições, naquele ano, foi equivalente a 55% da receita do Fundo.
Em 2022, o cenário é um pouco melhor, mas, ainda assim, não há a realização integral do orçamento. Naquele ano, o orçamento ficou em R$ 7,31 bilhões, tendo havido o pagamento de apenas R$ 4,98 bilhões das despesas – as contribuições corresponderam a 32% da receita do Fundo. Neste ano, inclusive, há uma despesa peculiar: valores decorrentes do FNDCT foram utilizados no cartão de pagamento da Defesa Civil, para um único beneficiário, uma empresa de engenharia, no valor de R$ 123 mil. Nos anos seguintes, 2023 e 2024, há maior equivalência entre orçamento atualizado, despesas empenhadas e despesas pagas, o que representa efetivo uso do recurso da CIDE Remessas.
A decisão do STF no Tema 914 retoma um debate fundamental no direito tributário: a possibilidade de indagarmos sobre as destinações financeira e fática das receitas arrecadadas com as contribuições e o impacto tributário que o descumprimento pode resultar. O ministro Dino está correto em afirmar que não se pode desconsiderar a arrecadação, sob pena de estarmos diante de outra espécie tributária. Não tenho dúvidas em afirmar que direito tributário e direito financeiro são práticas normativas que integram dois lados de uma mesma moeda. O debate sobre a destinação das contribuições é ilustrativo dessa conexão e pode inaugurar formas mais coerentes de interpretar as contribuições.
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